Uma
escola do Rio de Janeiro foi condenada judicialmente a pagar R$ 35 mil, no ano
passado, por danos morais à família de uma ex-aluna vítima de bullying, por agressões que ocorreram em
2003. O episódio não é um caso isolado no Brasil. Já existe uma jurisprudência
crescente no sentido de responsabilizar tanto a instituição de ensino quanto a
família do agressor, menor de idade, por não ter tomado medidas suficientes
para evitar ou lidar com o problema. Diante desse cenário, as escolas não têm
mais como ignorar o bullying. Para
prevenir as agressões e construir uma cultura de paz, na opinião dos
especialistas, não basta apenas instituir regras ou punições, é preciso
compreender melhor esse fenômeno social, suas causas e a importância do
processo educacional no aprendizado da convivência.
Antes de mais nada, é
necessário saber identificar o bullying.
Segundo a pedagoga Telma Vinha, doutora em Educação e professora do
Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora na área de Relações Interpessoais
e Desenvolvimento Moral, o termo é utilizado para designar atos agressivos
entre os estudantes, e sua prática apresenta mais de uma característica típica.
Os aspectos principais relacionados ao bullying são
quatro: há intenção do(s) autor(es) em ferir; são atos repetidos contra um ou
mais alvos constantes; há uma espécie de concordância do alvo sobre o que
pensam dele (por isso há crianças obesas que são alvos e outras não) e há um
público que prestigia as agressões – os ataques são escondidos dos adultos mas
nunca dos pares. “Vale a pena destacar que esses espectadores alimentam o
problema, dando poder, prestígio [ao autor], por compactuarem com o que ocorre.
Muitas vezes, este público participa com risos e olhares, mantendo a imagem de
que isto é divertido e que pertence ao grupo dos mais poderosos ou, pelo menos,
não faz parte do grupo dos mais ‘fracos’. Há também o medo de se tornar a
‘próxima vítima’. É preciso ficar do ‘lado do mais forte’”, ressalta Telma.
Mesmo quando às vezes
tomam conhecimento do problema, algumas escolas não agem para tentar
solucioná-lo; preferem fazer de conta que nada está acontecendo. Foi o caso das
instituições de ensino públicas e privadas pelas quais passou Alexandre
Saldanha, vítima de bullying durante toda a infância e
adolescência, que acabou se tornando advogado e dedicando sua vida profissional
e acadêmica ao combate desse tipo de violência. Saldanha conta que por ter sido
uma criança “gordinha” e com limitações motoras devido a sequelas de uma
hemiparesia direita, decorrente de seu nascimento prematuro, sofria com
gozações perversas por parte dos colegas, que o levaram ao isolamento. Quando
criou coragem para quebrar o silêncio, não obteve apoio. “As direções das
escolas assumiram uma política corporativa, encobrindo o fato e afirmando que
aquela situação se tratava de uma brincadeira de criança e, por isso, nada
podiam fazer”, relata.
Do ponto de vista
legal, o bullying – com essa denominação – não é
crime, porém já existe uma proposta, que faz parte do projeto de reforma do
Código Penal, para criminalizar a prática e instituir pena de um a quatro anos
de prisão. Entretanto, atualmente, tanto as escolas quanto os professores e as
famílias dos agressores podem ser responsabilizados pelas consequências do ato
e condenados a pagar indenizações às vítimas por danos morais, como vem
ocorrendo e sendo noticiado pela mídia cada vez com mais frequência, com base
em dispositivos do Código Civil, da Constituição Federal e do Estatuto da
Criança e do Adolescente. “Como o bullying acontece
dentro das dependências do estabelecimento de ensino no período de estadia dos
educandos, vê-se a figura da responsabilidade das escolas pelos danos causados
pelos seus alunos entre eles ou a terceiros”, afirma Alexandre Saldanha, que
atualmente mantém um blog sobre bullying e
Direito.
No caso do cyberbullying, em que as agressões ou ofensas
acontecem no meio virtual, a responsabilidade só pode ser atribuída também à
escola se o aluno usar o computador da instituição de ensino para o seu ataque
aos colegas. Caso o problema ocorra fora da escola, são os pais ou responsáveis
que terão que arcar com as consequências dos atos do filho menor de idade.
Conscientização
Ainda é difícil
precisar a gravidade do bullying no
Brasil. O estudo Bullying no Ambiente Escolar, realizado pela
organização não governamental Plan Brasil, voltada para a defesa dos direitos
da infância, revelou que o ato foi praticado e sofrido por 10% dos alunos
pesquisados. Nesse estudo, denominou-se bullying a
agressão a uma mesma pessoa superior a três vezes durante o ano letivo.
Participaram da pesquisa, concluída em 2010, 5.168 estudantes, além de pais,
responsáveis, professores e gestores de instituições nas cinco regiões do País.
Já em um estudo feito em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), quase um terço dos alunos respondeu já ter sofridobullying alguma vez na vida.
Com a exploração
crescente do tema pela mídia, muitas vezes sem as informações adequadas, não é
incomum que exista uma confusão entre o que faz parte dos conflitos naturais do
processo de convivência na infância e adolescência e o que pode ser configurado
como bullying. Por causa dessas distorções,
problemas que deveriam ser tratados no âmbito escolar estão indo parar nos
fóruns e nas delegacias. É com o intuito de diminuir essas ocorrências que o
Centro de Apoio Operacional (CAO) da Infância e Juventude do Ministério da
Justiça de Santa Catarina desenvolve desde 2010 a campanha Bullying, isso não é brincadeira. O programa
integra as ações de uma lei antibullying,
aprovada no Estado de Santa Catarina em 2009. “Percebemos que havia um grande
número de crianças e adolescentes que eram apontados como autores de ato
infracional quando, na verdade, haviam praticado uma infração disciplinar.
Assuntos que deveriam ser resolvidos dentro da escola estavam sendo
judicializados”, explica a promotora de Justiça e coordenadora do CAO da
Infância e Juventude, Priscilla Linhares Albino. Segundo a promotora, muitas
vezes coisas simples como um empurrão ou o uso de um apelido, em episódios esporádicos,
estavam sendo confundidos com atos infracionais. Priscilla ressalta que todos
os comportamentos inapropriados devem ser observados pelos responsáveis nas
escolas; entretanto, isso não significa que essas ações possam ser
classificadas como bullying.
Para esclarecer a
comunidade escolar, foram desenvolvidos e enviados materiais sobre o tema para
todas as instituições de ensino catarinenses. O Ministério da Justiça também
promoveu palestras para professores, psicólogos e assistentes sociais. Depois da
campanha, segundo Priscilla Albino, houve uma mudança no comprometimento das
escolas e dos educadores, além da redução do número de casos encaminhados para
a Justiça.
Formação e prevenção
Para combater o bullying, não basta punir o culpado. Aliás,
muitas vezes o autor da prática também já foi vítima de violência. Para ter
resultados efetivos e consistentes, as escolas precisam atuar nas causas,
buscando compreender melhor o contexto educacional. “As medidas punitivas
sugeridas são controversas e humilhantes, podendo acarretar sentimentos de
raiva e vingança posterior. Além disso, fazem com que o autor ‘quite o débito’,
não possibilitando a tomada de consciência do alcance dos seus atos”, alerta
Telma Vinha. A pedagoga destaca a importânciade investir na qualidade das
relações interpessoais, a partir de um exercício de resolução de conflitos
cotidianos, e da realização de um trabalho em que os alunos desenvolvam o
autorrespeito e, consequentemente, o respeito pelo outro. Telma não acredita
que propostas focadas apenas no estabelecimento de regras e deveres contribuam
para uma convivência ética e saudável.
O advogado Alexandre
Saldanha também não aposta no modelo punitivo tradicional como forma de evitar
o bullying. Saldanha propõe o uso de uma forma
alternativa à justiça comum. “A justiça restaurativa promove o diálogo entre as
partes envolvidas em agressões, sem prévios julgamentos de quem está certo ou
errado. Todos são ouvidos igualmente e, da mesma forma, são envolvidos em torno
do comprometimento de solucionar pacificamente o conflito”, observa.
Para Nei Alberto Salles
Filho, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR) e
coordenador do Núcleo de Estudos e Formação de Professores em Educação para a
Paz e Convivências (NEP), o bullying é
apenas parte de uma situação muito mais ampla e complexa. “Embora seja um
problema sério, é o que podemos chamar de ‘ponta doiceberg’
de um processo de falta de respeito, intolerância, de total identificação com o
outro; ou, dito de outra forma, obullying é
o resultado da falta de um clima escolar acolhedor e relações de convivência
positivas”, resume. Nei Salles acredita que o contexto em que as crianças e os
adolescentes estão crescendo, observando muitas vezes adultos violentos,
competitivos e intolerantes na família, no trânsito e até nas escolas,
influencia esses comportamentos. Para lidar com essa realidade, o professor da
UEPG defende a formação ampliada dos docentes, de modo a capacitá-los para
perceber a complexidade do processo educacional. O trabalho do NEP, segundo o
coordenador, baseia-se nos processos de restauração dos valores humanos,
mediação de conflitos, qualificação das convivências escolares e fortalecimento
da gestão educacional voltada à educação para a paz, que são colocados em prática
pelos professores em suas instituições de ensino depois do curso.
A escola não é a única
responsável pelo trabalho de ensinar a boa arte da convivência. A família, como
agente da socialização primária, exerce papel fundamental no aprendizado do
viver em sociedade. Mas, para a professora da Unicamp, o fracasso da família
nessa tarefa não implica no mesmo resultado pela instituição de ensino, onde
acontece a socialização secundária. “A escola não pode depender do bom
desempenho da família para educar seus alunos para a vivência em uma sociedade
democrática e contemporânea e nem esperar receber alunos ideais como
pré-requisito para ter êxito em sua tarefa. Aliás, as crianças que apresentam
dificuldades provavelmente decorrentes do ambiente familiar são as que mais
precisam do apoio da escola para se inserir socialmente”, defende Telma Vinha.
Matéria publicada na edição de setembro
de 2012 da revista Gestão Educacional. Deixe seu comentário na seção Voz do Leitor.