Matéria
publicada na edição de setembro de 2012 da revista Gestão Educacional.
A
revista Gestão Educacional publicou essa matéria sobre bullying com a ajuda de
Telma Vinha.
A
cada dia esse problema é mais discutido em rodas de conselhos escolares,
questionado por pais e professores e praticado por crianças e adolescentes.
Resolver definitivamente esse conflito é quase impossível, mas trabalhar para
amenizar essas situações é um dever de todos os envolvidos.
Uma
escola do Rio de Janeiro foi condenada judicialmente a pagar R$ 35 mil, no ano
passado, por danos morais à família de uma ex-aluna vítima de bullying, por
agressões que ocorreram em 2003. O episódio não é um caso isolado no Brasil. Já
existe uma jurisprudência crescente no sentido de responsabilizar tanto a
instituição de ensino quanto a família do agressor, menor de idade, por não ter
tomado medidas suficientes para evitar ou lidar com o problema. Diante desse
cenário, as escolas não têm mais como ignorar o bullying. Para prevenir as
agressões e construir uma cultura de paz, na opinião dos especialistas, não
basta apenas instituir regras ou punições, é preciso compreender melhor esse
fenômeno social, suas causas e a importância do processo educacional no
aprendizado da convivência.
Antes
de mais nada, é necessário saber identificar o bullying. Segundo a pedagoga
Telma Vinha, doutora em Educação e professora do Departamento de Psicologia
Educacional da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), pesquisadora na área de Relações Interpessoais e Desenvolvimento
Moral, o termo é utilizado para designar atos agressivos entre os estudantes, e
sua prática apresenta mais de uma característica típica. Os aspectos principais
relacionados ao bullying são quatro: há intenção do(s) autor(es) em ferir; são
atos repetidos contra um ou mais alvos constantes; há uma espécie de
concordância do alvo sobre o que pensam dele (por isso há crianças obesas que
são alvos e outras não) e há um público que prestigia as agressões – os ataques
são escondidos dos adultos mas nunca dos pares. “Vale a pena destacar que esses
espectadores alimentam o problema, dando poder, prestígio [ao autor], por
compactuarem com o que ocorre. Muitas vezes, este público participa com risos e
olhares, mantendo a imagem de que isto é divertido e que pertence ao grupo dos
mais poderosos ou, pelo menos, não faz parte do grupo dos mais ‘fracos’. Há
também o medo de se tornar a ‘próxima vítima’. É preciso ficar do ‘lado do mais
forte’”, ressalta Telma.
Mesmo
quando às vezes tomam conhecimento do problema, algumas escolas não agem para
tentar solucioná-lo; preferem fazer de conta que nada está acontecendo. Foi o
caso das instituições de ensino públicas e privadas pelas quais passou
Alexandre Saldanha, vítima de bullying durante toda a infância e adolescência,
que acabou se tornando advogado e dedicando sua vida profissional e acadêmica
ao combate desse tipo de violência. Saldanha conta que por ter sido uma criança
“gordinha” e com limitações motoras devido a sequelas de uma hemiparesia
direita, decorrente de seu nascimento prematuro, sofria com gozações perversas
por parte dos colegas, que o levaram ao isolamento. Quando criou coragem para
quebrar o silêncio, não obteve apoio. “As direções das escolas assumiram uma
política corporativa, encobrindo o fato e afirmando que aquela situação se
tratava de uma brincadeira de criança e, por isso, nada podiam fazer”, relata.
Do
ponto de vista legal, o bullying – com essa denominação – não é crime, porém já
existe uma proposta, que faz parte do projeto de reforma do Código Penal, para
criminalizar a prática e instituir pena de um a quatro anos de prisão.
Entretanto, atualmente, tanto as escolas quanto os professores e as famílias
dos agressores podem ser responsabilizados pelas consequências do ato e
condenados a pagar indenizações às vítimas por danos morais, como vem ocorrendo
e sendo noticiado pela mídia cada vez com mais frequência, com base em
dispositivos do Código Civil, da Constituição Federal e do Estatuto da Criança
e do Adolescente. “Como o bullying acontece dentro das dependências do
estabelecimento de ensino no período de estadia dos educandos, vê-se a figura
da responsabilidade das escolas pelos danos causados pelos seus alunos entre
eles ou a terceiros”, afirma Alexandre Saldanha, que atualmente mantém um blog
sobre bullying e Direito.
No
caso do cyberbullying, em que as agressões ou ofensas acontecem no meio
virtual, a responsabilidade só pode ser atribuída também à escola se o aluno
usar o computador da instituição de ensino para o seu ataque aos colegas. Caso
o problema ocorra fora da escola, são os pais ou responsáveis que terão que
arcar com as consequências dos atos do filho menor de idade.
Conscientização
Ainda
é difícil precisar a gravidade do bullying no Brasil. O estudo Bullying no
Ambiente Escolar, realizado pela organização não governamental Plan Brasil,
voltada para a defesa dos direitos da infância, revelou que o ato foi praticado
e sofrido por 10% dos alunos pesquisados. Nesse estudo, denominou-se bullying a
agressão a uma mesma pessoa superior a três vezes durante o ano letivo.
Participaram da pesquisa, concluída em 2010, 5.168 estudantes, além de pais,
responsáveis, professores e gestores de instituições nas cinco regiões do País.
Já em um estudo feito em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), quase um terço dos alunos respondeu já ter sofrido bullying
alguma vez na vida.
Com
a exploração crescente do tema pela mídia, muitas vezes sem as informações
adequadas, não é incomum que exista uma confusão entre o que faz parte dos
conflitos naturais do processo de convivência na infância e adolescência e o
que pode ser configurado como bullying. Por causa dessas distorções, problemas
que deveriam ser tratados no âmbito escolar estão indo parar nos fóruns e nas
delegacias. É com o intuito de diminuir essas ocorrências que o Centro de Apoio
Operacional (CAO) da Infância e Juventude do Ministério da Justiça de Santa
Catarina desenvolve desde 2010 a campanha Bullying, isso não é brincadeira. O
programa integra as ações de uma lei antibullying, aprovada no Estado de Santa
Catarina em 2009. “Percebemos que havia um grande número de crianças e
adolescentes que eram apontados como autores de ato infracional quando, na
verdade, haviam praticado uma infração disciplinar. Assuntos que deveriam ser
resolvidos dentro da escola estavam sendo judicializados”, explica a promotora
de Justiça e coordenadora do CAO da Infância e Juventude, Priscilla Linhares
Albino. Segundo a promotora, muitas vezes coisas simples como um empurrão ou o
uso de um apelido, em episódios esporádicos, estavam sendo confundidos com atos
infracionais. Priscilla ressalta que todos os comportamentos inapropriados
devem ser observados pelos responsáveis nas escolas; entretanto, isso não
significa que essas ações possam ser classificadas como bullying.
Para
esclarecer a comunidade escolar, foram desenvolvidos e enviados materiais sobre
o tema para todas as instituições de ensino catarinenses. O Ministério da
Justiça também promoveu palestras para professores, psicólogos e assistentes
sociais. Depois da campanha, segundo Priscilla Albino, houve uma mudança no
comprometimento das escolas e dos educadores, além da redução do número de
casos encaminhados para a Justiça.
Formação e prevenção
Para
combater o bullying, não basta punir o culpado. Aliás, muitas vezes o autor da
prática também já foi vítima de violência. Para ter resultados efetivos e
consistentes, as escolas precisam atuar nas causas, buscando compreender melhor
o contexto educacional. “As medidas punitivas sugeridas são controversas e
humilhantes, podendo acarretar sentimentos de raiva e vingança posterior. Além
disso, fazem com que o autor ‘quite o débito’, não possibilitando a tomada de
consciência do alcance dos seus atos”, alerta Telma Vinha. A pedagoga destaca a
importânciade investir na qualidade das relações interpessoais, a partir de um
exercício de resolução de conflitos cotidianos, e da realização de um trabalho
em que os alunos desenvolvam o autorrespeito e, consequentemente, o respeito
pelo outro. Telma não acredita que propostas focadas apenas no estabelecimento
de regras e deveres contribuam para uma convivência ética e saudável.
O
advogado Alexandre Saldanha também não aposta no modelo punitivo tradicional
como forma de evitar o bullying. Saldanha propõe o uso de uma forma alternativa
à justiça comum. “A justiça restaurativa promove o diálogo entre as partes
envolvidas em agressões, sem prévios julgamentos de quem está certo ou errado.
Todos são ouvidos igualmente e, da mesma forma, são envolvidos em torno do
comprometimento de solucionar pacificamente o conflito”, observa.
Para
Nei Alberto Salles Filho, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG-PR) e coordenador do Núcleo de Estudos e Formação de Professores em
Educação para a Paz e Convivências (NEP), o bullying é apenas parte de uma
situação muito mais ampla e complexa. “Embora seja um problema sério, é o que
podemos chamar de ‘ponta do iceberg’ de um processo de falta de respeito,
intolerância, de total identificação com o outro; ou, dito de outra forma, o
bullying é o resultado da falta de um clima escolar acolhedor e relações de
convivência positivas”, resume. Nei Salles acredita que o contexto em que as
crianças e os adolescentes estão crescendo, observando muitas vezes adultos
violentos, competitivos e intolerantes na família, no trânsito e até nas escolas,
influencia esses comportamentos. Para lidar com essa realidade, o professor da
UEPG defende a formação ampliada dos docentes, de modo a capacitá-los para
perceber a complexidade do processo educacional. O trabalho do NEP, segundo o
coordenador, baseia-se nos processos de restauração dos valores humanos,
mediação de conflitos, qualificação das convivências escolares e fortalecimento
da gestão educacional voltada à educação para a paz, que são colocados em
prática pelos professores em suas instituições de ensino depois do curso.
A
escola não é a única responsável pelo trabalho de ensinar a boa arte da
convivência. A família, como agente da socialização primária, exerce papel
fundamental no aprendizado do viver em sociedade. Mas, para a professora da
Unicamp, o fracasso da família nessa tarefa não implica no mesmo resultado pela
instituição de ensino, onde acontece a socialização secundária. “A escola não
pode depender do bom desempenho da família para educar seus alunos para a
vivência em uma sociedade democrática e contemporânea e nem esperar receber
alunos ideais como pré-requisito para ter êxito em sua tarefa. Aliás, as
crianças que apresentam dificuldades provavelmente decorrentes do ambiente
familiar são as que mais precisam do apoio da escola para se inserir
socialmente”, defende Telma Vinha